(Opinião) Entre o sonho das Índias Negras e a realidade do minério pobre (5)
E, apesar da míngua de resultados, não falta sequer a construção de um (quase)-herói para este sector produtivo: personagem plebeu único que surge nesta história de reis, José Bonifácio de Andrade e Silva é ao mesmo tempo alvo dos maiores elogios sendo o “ilustre entre os ilustres da classe mineira em Portugal” e considerado “talvez mau administrador, mas grande professor” (ocultando convenientemente, pelo caminho, que o “ilustre português” que “fez os seus primeiros estudo no Brasil” é considerado afinal um herói da luta pela independência do Brasil e seu destacado dirigente político).
José Bonifácio cumpre assim o papel nesta história de contraponto e garante obscuro: onde antes surgia o inventor famoso como garante da palavra surge agora o estudioso que falha a prova da prática como prova, junto com a legislação régia, do esforço de todo um país durante toda a sua história. E é assim que depois disso, num salto argumentativo, se conclui mesmo que “como acaba de ver-se (…) muito se tem feito em Portugal para tentar o desenvolvimento mineiro.”
Apesar de tudo isto, o lema “bastante tem sido já feito; muito falta ainda fazer” não é apenas o louvor nacionalista envergonhado ou reconhecimento recatado da falta de resultados que abre portas para uma esperança de novas descobertas. Ele é também, ao mesmo tempo, incentivo para fazer o que falta fazer.
Porquê fazê-lo? A prospecção argumentativa sobre as potencialidades mineiras do país pensa ter encontrado também um outro filão: a riqueza pode afinal esconder-se onde antes apenas se via pobreza dadas as inovações tecnológicas e os novos métodos de trabalho que permitiriam “tornar próperas (sic) explorações que eram econòmicamente impossíveis ainda há bem poucos anos”. Ou seja, “o aparecimento de um novo processo industrial pode revolucionar, completamente, uma tal indústria, e aquilo que nos parece inaproveitável virá, talvez num dia próximo, a ser de grande valor para considerar.” E, da mesma forma, pensa-se que minérios que não têm agora valor podem passar a tê-lo… Por isso, ainda que não se encontre a riqueza no novo que teima em não aparecer, o pobre mesmo de sempre pode afinal ser alvo de revalorização. À utopia de primeira geração de uma descoberta soma-se agora uma utopia técnica da reutilização de segunda geração: Índias Negras 2.0.
Para além disto, argumenta-se sobre a necessidade de investimento neste sector dada a mera possibilidade de mudar o destino de regiões de outra forma condenadas à pobreza: porque “em geral, [as minas] surgem em locais distantes, onde nunca poderia ser montada qualquer indústria, por nada haver que o indicasse”; porque vão “proporcionar, possìvelmente por muito tempo, a vida, o trabalho e o pão a populações que viviam, por vezes, em plena miséria e que, melhorando assim as suas condições da sua existência, muito modificarão, pelo seu número e novas possibilidades, a feição da sua terra.” Num regime mais dado à auto-celebração que à autocrítica e onde a censura procura poupar o povo às más notícias, num país influenciado por um discurso miserabilista que por vezes parece ser de ostentação da pobreza, esta referência do parecer da Câmara Corporativa parece indicar-nos a analogia Índias Negras como caminho alternativo sem ser alternativa a nada.
Uma última nota sobre este parecer para salientar que também uma nota de precaução sobre a economia do carvão nele surge expressamente compreendendo-se o fim de uma época: “assim foram êles considerados até não há muitos anos; porém, depois, o petróleo veio a equiparar-se-lhes e ràpidamente a ultrapassá-los, ocupando êste, hoje o primeiro lugar entre os produtos indispensáveis à economia mundial.” Num período em que se sonha que as Índias Negras podem ser possíveis em Portugal, o “ouro negro” faz já uma aparição definitiva na história da riqueza extractivista ainda que nem sequer surja aqui neste escrito como um sonho possível de riqueza em Portugal.
O balanço do segundo encontro de Rio Maior com a mina também não vai no sentido da utopia mineira de Verne. Mesmo durante o curto período de crescimento, de alta produção e esperança, o rápido crescimento da vila não deu lugar a um paraíso urbano, o que demostra a incapacidade das autoridades nacionais e locais de assegurar condições dignas de habitação para os mineiros. E a situação só piora no pós-guerra à medida do declínio económico da empresa mineira de Rio Maior. O sonho mineiro torna-se um pesadelo social. A determinação aventureira é agora uma miragem face à indecisão das burocracias. Trata-se de decidir como fazer face às insuficiências da empresa: reconhecendo-se a necessidade de manutenção da exploração (quer dados os compromissos inerentes ao investimento quer dada a possibilidade de nova situação de isolamento energético) as alternativas em jogo serão a construção de uma central termoeléctrica, o fabrico de briquetes, a transformação em adubos. Outro símbolo da morosidade de processos face às crises: apenas dez anos depois do fim da guerra a solução da fábrica de briquetes se irá materializar. (10)
Claro que seria injusto culpar apenas os burocratas ministeriais do Estado Novo pelas fraquezas da lavra mineira: o carvão pobre, a obsolescência do carvão face ao petróleo entre outras dificuldades fazem parte natural do processo de definhamento produtivo que marcou todos os desencontros futuros. Até que da memória do complexo mineiro parecia apenas restar uma chaminé que a marcava a silhueta da cidade, um conjunto de edifícios abandonados e muitas vivências não reconhecidas.
"À utopia de primeira geração de uma descoberta soma-se agora uma utopia técnica da reutilização de segunda geração: Índias Negras 2.0."
"O balanço do segundo encontro de Rio Maior com a mina também não vai no sentido da utopia mineira de Verne. Mesmo durante o curto período de crescimento, de alta produção e esperança, o rápido crescimento da vila não deu lugar a um paraíso urbano (...)."