(Opinião) Entre o sonho das Índias Negras e a realidade do minério pobre
Por Carlos Carujo
Projecto de Cidadania "Dar a vez e a voz aos Cidadãos"
Poderíamos simplificar dizendo que Rio Maior terá tido três momentos principais de encontro com as minas. Um primeiro devido à teimosia de um republicano da velha guarda, um segundo devido às necessidades energéticas de um país isolado num mundo em guerra e um terceiro devido à força do associativismo que procura resgatar a memória colectiva. A prospecção superficial que aqui faremos analisará em cada um dos casos alguns dos indícios imperfeitos e circunstanciais de discursos sobre o que foi um sonho de prosperidade.
O primeiro encontro de Rio Maior com as minas apresentava-se como a abertura de um campo de possibilidades para além da condenação à pobreza que era a vida nos campos num país que não tinha vivido uma verdadeira revolução industrial e imerso numa guerra de dimensões inéditas.
O documento-símbolo para lermos como se apresentava a descoberta da riqueza do carvão nas entranhas da terra será a “Memória Descritiva” publicada por António Custódio dos Santos no jornal “O Riomaiorense”. (1)
Este texto é simultaneamente uma argumentação detalhada sobre o direito (disputado) do autor a explorar a mina de lignite do Espadanal e a saga da sua perseverante descoberta para além de falhanços sucessivos e de desânimos alheios sempre sob o signo do amadorismo aventureiro (o autor sublinha que é guiado sobretudo por um “estranho pressentimento”). Romantizado e rocambolesco, dele ressalvaremos três detalhes curiosos: a referência a um romance de Jules Verne; a corrida à Câmara Municipal para registar a mina do Espadanal e a intervenção no processo do pioneiro inventor português Padre Himalaya.
O primeiro detalhe curioso abre este artigo apresentando-se como a inspiração da pesquisa por carvão. A referência ao romance “As Índias Negras” (2) de Jules Verne é um procedimento retórico que, em primeiro lugar, traça um paralelismo subtil entre a situação do republicano português e a dos heróis do livro (sobretudo com o aristocrata engenheiro ilustrado que será o motor do regresso à exploração de uma mina que tinha sido desactivada por se considerar o filão esgotado). Na ficção de Verne como no relato de Custódio dos Santos, o acaso da descoberta (em ambos os casos não é o herói que descobre os primeiros vestígios mas é ele que traz ao processo a paciência e o labor necessários) é complementado pela ideia de “ir mais longe” e de não desistir como fórmula para alcançar as maravilhas que a natureza colocaria ao dispor do ser humano.
Colocar-se sob o signo das “Índias Negras” é também abraçar a ideologia positiva do progresso tecnológico à base do extrativismo que atravessa este livro. O próprio título é já de si um manifesto: tal como “as Índias” tinham sido uma das fontes de riqueza do império britânico, as minas de carvão corresponderiam, no tempo da revolução industrial, a um novo filão caseiro de riquezas incontáveis.
Sublinhe-se, por último, a prevalência do modelo “livro de aventuras” que parece transpirar para o próprio processo argumentativo do autor. Na modalidade do texto de Verne, o livro de aventuras remete para as figuras tradicionais do herói (e da história de amor), do vilão (ou vilões) e dos ajudantes mas também para uma simultânea dessacralização racionalista do real e busca da utopia em consonância com parte importante do ideário da época. A reactivação da mina em Verne (e, neste sentido, as minas de Rio Maior nunca tiveram o seu momento “Índias Negras” de (re)descoberta de uma riqueza deslumbrante) irá esbarrando com vários reveses misteriosos que a fazem perigar. Desta forma, um outro enredo subterrâneo se constrói em que os saberes antigos das velhas superstições saem perdedores: afinal as justificações sobre as causas desses acontecimentos feitas à base de fadas e de duendes (próprias dos mineiros escoceses) revelar-se-ão inadequadas já que a causa verdadeira dos problemas é tão racional quanto irracional – a maldade demasiado humana de um misantropo.
Só que, por outro lado, a racionalidade dedutiva desmistificadora não esmaga o maravilhoso. Este permanece activo sob a forma da utopia tecnológico-natural que conjuga perfeitamente o esforço humano e a natureza enquanto “criação de Deus”: devido às condições excepcionais da mina construir-se-á aí uma cidade subterrânea quase perfeita, a Coal-City. Esta é, ao mesmo tempo, uma cidade protegida da suposta agressividade dos elementos externos naturais (o “clima detestável” exterior, repete-se no texto, torna-a ainda mais apetecível) e uma cidade protectora dos seus trabalhadores contrastando com a difícil realidade das condições de trabalho nas minas da época. Verne refere os altos salários e as boas condições de habitação directamente, sugere a facilitação das condições de trabalho dada a abundância e acessibilidade do carvão, apresenta o aumento da natalidade e o facto de os seus habitantes preferirem não sair sequer para ver o sol como sinais da prosperidade de uma cidade apresentada como tendo alcançado rapidamente o estatuto de rival da capital escocesa e à qual acorrem inúmeros turistas deslumbrados. Desta forma, em “As Índias Negras” o sonho mineiro protege-se da sua própria dureza…
E, ainda que esta dimensão utópica não transpareça directamente no texto que analisamos, ele será talvez uma forma de tornar declinável uma utopia mais comezinha, uma pequena Índia Negra apresentada como solução dos problemas locais, uma esperança retomada inúmeras vezes depois de enunciada pela primeira vez. A utopia da descoberta de uma fonte maravilhosa de riqueza ou da concretização numa cartada de um empreendimento magnífico tem sido uma constante nas estórias e ideologias concretas do desenvolvimento local.
(1)
António Custódio dos Santos, “Memória Descritiva: Como foi descoberto o carvão em Rio Maior”, publicado originalmente no jornal “O Riomaiorense” (2ª série) número 264, de 21 de Junho de 1919. Republicado na 11ª série, número 1, 6 de Novembro de 2015.
(2)
Livre de direitos de autor, a obra de Jules Verne está facilmente disponível online na sua versão original.
Figura 1 - António Custódio dos Santos (1885-1972). Fotografia datada de 1907. © Colecção Teresa Santos do Carmo, Arquivo EICEL1920.
"A utopia da descoberta de uma fonte maravilhosa de riqueza ou da concretização numa cartada de um empreendimento magnífico tem sido uma constante nas estórias e ideologias concretas do desenvolvimento local."