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(Opinião) Entre o sonho das Índias Negras e a realidade do minério pobre (3)

                                                    

 

 

                                    

 

 

 

Um segundo encontro com as minas vai sacudir essa letargia produtiva e transformar radicalmente a vila rural imprimindo uma marca social e urbana perene. Outra vez sob o signo do realismo da economia de guerra, este momento parece a antítese da aventura: o cálculo amargo da rentabilização de emergência ou a proposta paciente da laboração contínua substituir-se-iam à linguagem empolgada da descoberta do novo.

 

A mina do Espadanal será chamada a desempenhar um papel no abastecimento energético quer da capital quer de algumas indústrias face aos problemas ocasionados pela II Guerra Mundial. A localização estratégica permite que, apesar desse reconhecimento do “carvão pobre”, Rio Maior ganhe importância e se torne rapidamente um centro mineiro.

 

E se o documento simbólico do encontro anterior era o artigo de jornal como se fora um livro de aventuras, os deste encontro e dos desencontros que se lhe seguem são sobretudo os próprios a uma racionalidade técnica e burocrática: o decreto-lei, o regulamento, o parecer, o estudo. A forma de escrever a mina já não tem quaisquer vestígios subjectivistas e é agora discurso de Estado, pensamento corporativista, trocando o individual e o local pela nação como escala do empreendimento.

 

No interior deste discurso, temos uma parte mais directamente marcada pela urgência e pela excepção.

 

O Decreto n° 30-063 de 16 de Novembro de 1939 (4) publicado apenas mês e meio após a invasão da Polónia pela Alemanha dominada pelos nazis e consequente início da guerra mundial, dá-nos uma pista sobre como se entendia a relação entre a produção e consumo do carvão nacional e o conjunto da economia no contexto da guerra. Nele se justifica a criação de uma “Comissão Reguladora do Comércio de Carvões” através da tentativa de uma manutenção de normalidade sacudida pela violência dos acontecimentos: “não só temos de nos defender na medida do possível contra a alta dos preços, dos fretes e dos seguros (...) como precisamos de garantir o abastecimento normal do País, para que a nossa indústria não venha a sofrer uma crise grave, resultante da escassez do combustível.” E atribui-lhe como funções: “Orientar, disciplinar e fiscalizar as actividades relacionadas com o comércio e produção de carvões combustíveis, tendo em vista a garantia do normal abastecimento do País, o desenvolvimento da produção nacional e a manutenção do justo preço dos produtos.” Mais do que um sector rentável, gerador de riqueza por si mesmo, a extracção de carvão surge retratada como necessária à indústria e centrando-se no consumo interno. É, antes de mais, um assunto de “defesa do País” (com letra maiúscula) que depende por isso da intervenção directa do Estado.

 

Por sua vez, o decreto-lei 32.270 de 19 de Setembro de 1942 interessar-nos-á porque especifica o caso das minas de Rio Maior: “apesar dos esforços no sentido de aumentar a extracção de carvões, as quantidades produzidas, sendo muito mais elevadas, ficam ainda longe das necessidades de consumo… é necessário organizar a exploração de lignites pois embora se trate de um combustível de inferior qualidade, a sua extracção em larga escala pode contribuir para atenuar as presentes dificuldades. Estão neste caso os jazigos de Rio Maior, quer pelas existências já reconhecidas, quer em virtude da rapidez com que se podem adaptar a uma lavra mais activa…” (5)

 

As medidas de viabilização da mina do Espadanal são assim apresentadas, a meio do conflito internacional, solução de recurso e a breve prazo. Fixar-se-ão metas de produção, conceder-se-á um empréstimo, prever-se-á a construção de uma linha férrea para escoar a lignite rio-maiorense. Símbolo das vicissitudes e da morosidade desta urgência nacional, apenas em 1945, ano em que a guerra acaba, esta linha férrea entrará em funcionamento. Burocracia e tecnocracia, indefinição na estratégia de aproveitamento da mina e um proteccionismo económico falhado serão doravante também parte significativa desta história. Enquanto a política interna do Estado Novo segue os seus caminhos, de certa forma igualmente misteriosos e subterrâneos, a situação económica da empresa vai-se degradando e a situação dos mineiros ressente-se.

 

Só que o discurso decisivo sobre a produção mineira da ditadura nesta época não se limita a procurar assegurar uma normalidade produtiva. É também, e sobretudo, uma tentativa de reforma estrutural do sector e de incremento da produção. Daí a “lei de fomento mineiro”, o decreto-Lei n° 29.725, de 28 de Junho de 1939. Dele sublinham-se aqui apenas duas dimensões: a sua narrativa sobre o desenvolvimento nacional e a sua relação com o saber.

 

Esta primeira dimensão insere-se nas tensões próprias da economia política do fascismo à portuguesa entre as tendências modernizadoras e o conservadorismo, o industrialismo protegido pelo Estado e o persistente agrarismo de baixa produtividade. Um agrarismo conservador que pertence a um universo bem diferente do agrarismo inventivo do Padre Himalaya.

 

Avelãs Nunes mostra-nos como neste documento “invocando argumentos como a responsabilidade das correntes e políticas ruralistas na manutenção dos níveis de pobreza e dos fluxos emigratórios, no reproduzir do endividamento externo e de inúmeras fragilidades estratégicas, defende-se a necessidade e viabilidade de concretizar uma industrialização sustentável (apenas temporária e moderadamente proteccionista).” (6)

 

A riqueza-plano da industrialização não se entende como mero resultado de um golpe de sorte, é todo um trabalho metódico. E ao extrativismo é atribuído um papel nesse projecto modernizador de um país que tinha sido tão orgulhosamente rural quanto orgulhosamente só. “Fomento industrial” e “fomento mineiro” serão duas faces da mesma moeda. E mesmo a própria expressão “fomento” é já por si só todo um manifesto sobre um certo caminho para a prosperidade.

 

Contudo, tal discurso apenas é possível porque uma alteração significativa está a acontecer nas estruturas do poder: “O cerco económico originado pelo segundo conflito mundial, por seu turno, haveria de conduzir os industrialistas ao poder, mais sob a pressão imediata das terríveis contingências originadas pela guerra e pelo bloqueio económico do que por clara opção industrialista por parte de Salazar.” (7)

"A forma de escrever a mina já não tem quaisquer vestígios subjectivistas e é agora discurso de Estado, pensamento corporativista, trocando o individual e o local pela nação como escala do empreendimento."

 

(4)

Publicado no Diário do Governo n°. 268, 1ª série, de 16 de Novembro em: Idorindo Vasconcelos da Rocha, “O Carvão numa economia nacional - o caso das Minas do Pejão”, Dissertação de Mestrado em História Contemporânea na Universidade do Porto, 1997, pags. 285, 286.

(5)

Publicado em "Couto Mineiro do Espadanal (Rio Maior): Memória e Património de um Passado Industrial". José Manuel Brandão e Nuno Alexandre Rocha. In Arqueologia Industrial, quarta série, volume III, números 1-2. Vila Nova de Famalicão: APPI, 2007, pp.5-19.

(6)

Segundo João Paulo Avelãs Nunes, “A Indústria mineira em Portugal Continental desde a consolidação do regime liberal ao I Plano de Fomento do Estado Novo (1832-1953). Um esboço de caracterização”, Revista Portuguesa de História, t. XXXV (2001-2002).

(7)

Fernando Rosas, “Estado Novo e desenvolvimento económico (anos 30 e 40): uma industrialização sem reforma agrária”, Análise Social, vol. XXIX (128), 1994 (4.°), 871-887.

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