(Entrevista) MINEIROS de Rio Maior (8)
O Riomaiorense: Como descreve as condições de vida que a família encontrou em Rio Maior?
Victor Almeida: Os mineiros, quando chegados a Rio Maior, não tinham onde habitar. Só o bairro dos Leonores, ou do Abum, hoje Rua da Paz, mas rebaptizada pelos cínicos e pelos mais racistas de "bairro dos índios", que acolhia alguns casais de mineiros com filhos, alugando-lhes habitações e casebres anexos, era uma das poucas excepções.
Devo enaltecer o papel positivo do Sr. António Feliciano Júnior, filho de um alfaiate. Embora não fosse meu professor, o Sr. António Feliciano teve um papel integracionista face às famílias dos mineiros de Rio Maior, oriundos de outras localidades portuguesas diversas, distantes deste concelho. Assim o Sr. António, o Padre Armando Delgado Marques e a Dona Maria Luísa, esposa do Engenheiro Fraga, e em colaboração com os engenheiros do Espadanal souberam influenciar o meio para a construção de dois bairros de habitação social, para arrendamento a famílias de trabalhadores das minas, com baixos salários. O meu pai, e toda a minha família, foi um dos beneficiários deste projecto, no bairro de Santa Bárbara nesta então vila, e que hoje, passados mais de cinquenta anos, ainda existe bem conservado e apresentável, mantendo a mesma traça arquitectónica.
O dinheiro que o meu pai ganhava na mina, sendo o único na família que trabalhava, quando chegámos a Rio Maior, não chegava para as despesas. Por isso tinha uma pequena horta, onde semeava produtos hortícolas, com a ajuda da minha mãe e irmãos, e para o sustento de todos. Apesar de miúdos a frequentar a escola básica, todos tinham que ajudar a semear e a regar os produtos hortícolas do pequeno terreno, que fazia parte do arrendamento e se encontrava mesmo em frente à casa de habitação, quer no bairro Santa Bárbara, quer depois, anos mais tarde, na Rua da Paz, que ficava logo a seguir ao Casal Abum, em Rio Maior. Este casal era rodeado de eucaliptos, e poucas habitações havia, sendo a nossa casa a única do lado norte da estrada térrea, que ali passava. Mais tarde, é que se construíram mais habitações, mas do lado sul da via, e a estrada foi alcatroada.
Não me lembro de ter passado fome, embora tivéssemos carências alimentares, como todas as outras famílias e mineiros. Como o meu pai tinha uma pequeníssima pecuária legal, junto da horta e perto da casa de habitação, pelo Natal, quando um dos suínos aí criados já estava gordo, havia matança de porco. Era a única vez que havia festa lá em casa. A ementa eram febras assadas na brasa, mas, nesta altura do ano, sempre bacalhau, com couves e batatas, filhoses, nozes, castanhas e café, servido no fim, como guloseima. Havia algumas prendas de Natal, como um par de calças novas, um par de sapatos novos, peúgas, camisolas de lã e roupa interior. Fatos e casacos, nunca. O dinheiro que ganhava entregava-o quase todo à minha mãe, tal como os outros meus irmãos faziam, por ordem do meu pai. Só anos mais tarde, com o pouco dinheiro que ficava para mim, resolvi comprar um casaco à moda, e um cocciolo italiano, com duas rodas, já usado, com o motor a dois tempos, por cima da roda da frente.
Como não tínhamos água quente canalizada em casa, por vezes eu ia tomar um duche à fábrica dos briquetes da mina, que ficava distanciada desta modesta residência, onde morávamos, a cerca de trezentos metros, indo a pé por carreiros estreitos que atravessavam os pinhais e eucaliptais, que havia antes dos acessos a essas instalações e à mina do Espadanal. Mais tarde, o meu pai mandou instalar água canalizada da rede camarária de abastecimento e fez um anexo com um duche improvisado, para todos podermos tomar banho. Foi um grande acontecimento, ver as torneiras jorrarem água, embora tivéssemos esse precioso líquido, que tirávamos dum poço, que estava aberto a poucos metros da casa, mas que era mais usado para regar as sementeiras anuais, feitas nos meados de Março, de batatas, de couves, de cenouras, de alhos, de cebolas e, no final de Abril, Maio e Junho, o feijão verde, os tomates, os poucos melões, e algumas melancias. Tudo para consumo doméstico, porque a quantidade não chegava para vender a ninguém. A única árvore de frutos que existia era uma figueira, onde eu ia apanhar figos para dar à minha mãe.
O terreno onde o meu pai semeava as suas hortaliças era um olival, explorado pelo senhorio, natural da Azinheira, que todos os anos por lá passava, com outras pessoas, para recolher a azeitona. Eu era o único que ajudava o meu pai na horta e na tarefa de alimentar os suínos.
O Riomaiorense: Chegou a Rio Maior em idade escolar. Que recordações tem dos tempos de escola?
Victor Almeida: Entrei para a escola primária, pela primeira vez, em Rio Maior, em 1956 ou 1957. O professor Amílcar Andrade foi o meu único professor até à 4.ª classe, sendo a sala de aulas no rés-do-chão, continuamente a mesma. Estive sempre sentado na segunda carteira, logo à frente. Os últimos assentos, lá para trás estavam reservados aos repetentes, que todos nós apelidávamos de carteiras dos burros. Sem nunca perder nenhum ano, nem faltar durante esses períodos de tempo escolar, aí permaneci durante esses quatro anos que me pareciam uma eternidade, mas que gostei de frequentar. No recreio brincávamos às bandeiras e a jogar o peão, no chão, e ao botão. Recordo-me que houve um ano em que almoçava, às vezes, na cantina da escola sem qualquer pagamento em dinheiro ou géneros, e só havia turmas de rapazes. As alunas, raparigas, da minha idade, andavam noutra escola, mais afastada desta. Tinha a percepção de que a minha mãe não gostava que eu tomasse qualquer refeição na cantina da escola, pelas perguntas que fez sobre a mesma.
Nem o meu pai, nem a minha mãe, nunca entraram ou se aproximaram sequer, do edifício desta escola, e que tinha a cantina contígua. Ainda hoje me pergunto porquê.
Lá em casa, a minha mãe, por vezes, admoestava-me porque gastava muito petróleo, no candeeiro, quando estudava no Inverno depois do pôr-do-sol.
Quando ia para a escola levava uma sacola, e dentro da mesma um caderno de linhas, um caderno de contas, um livro, um lápis, uma borracha, um aparo de tinta azul e uma ardósia de cor preta. Nunca gostei nada da pedra e estava sempre com receio de a partir. Tinha sido cara, dizia a minha mãe, porque custara 12 escudos (5 cêntimos).
Lembro-me bem do rigor e da disciplina do meu professor da escola primária. Eu era bom aluno e nunca perdi qualquer ano lectivo. Tinha medo da régua e da vara, que o professor usava para obrigar os alunos a estudar. Por cada erro no ditado ou composição de texto, na disciplina de português, dava origem a uma reguada; cada conta errada, no quadro, ao qual todos tinham receio de ir, o aluno levava uma varada nas orelhas e na cabeça, à qual dávamos o nome de varada na tola. E até aqueles que se esqueciam de pôr o ponto nos "ii" e nos "jótas" levavam com a vara.
Victor Centúrio de Almeida na antiga fábrica de briquetes da Mina do Espadanal.
© Fernando Penim Redondo, 18 de Junho de 2014.